Allan
Kardec
1864
REVISTA ESPÍRITA
Jornal de Estudos Psicológicos
Questões e Problemas
PROGRESSO NAS PRIMEIRAS ENCARNAÇÕES
Pergunta – Duas almas, criadas simples e ignorantes,
que não conhecem o bem, nem o mal, vêm à Terra. Se, numa primeira existência,
uma seguir o caminho do bem, e a outra o do mal, já que, de certo modo, é o
acaso que as conduz, elas não merecem castigo nem recompensa. Essa primeira
viagem terrestre não deve ter servido senão para dar a cada uma delas a
consciência de sua existência, consciência que antes não tinham. Para ser
lógico, seria preciso admitir que as punições e as recompensas só começariam a ser
infligidas ou concedidas a partir da segunda encarnação, quando os Espíritos já
soubessem distinguir entre o bem e o mal, experiência que lhes faltaria por
ocasião de sua criação, mas que adquiririam por meio de sua primeira
encarnação. Tal opinião tem fundamento?
Resposta – Embora esta pergunta já esteja resolvida
pela Doutrina Espírita, vamos respondê-la, para a instrução de todos.
Ignoramos
absolutamente em que condições se dão as primeiras encarnações da alma; é um
desses princípios das coisas que estão nos segredos de Deus. Apenas sabemos que
são criadas simples e ignorantes, tendo todas, assim, o mesmo ponto de partida,
o que é conforme à justiça; o que sabemos ainda é que o livre-arbítrio só se
desenvolve pouco a pouco e após numerosas evoluções na vida corpórea. Não é,
pois, nem após a primeira, nem depois da segunda encarnação que a alma tem
consciência bastante clara de si mesma, para ser responsável por seus atos; não
é senão após a centésima, talvez após a milésima. Dá-se o mesmo com a criança,
que não goza da plenitude de suas faculdades, nem um, nem dois dias após o
nascimento, mas depois de anos. E, ainda, quando a alma goza do livre-arbítrio,
a responsabilidade cresce em razão do desenvolvimento de sua inteligência; é
assim, por exemplo, que um selvagem que come os seus semelhantes é castigado
que o homem civilizado, que comete uma simples injustiça. Sem dúvida os nossos
selvagens estão muito atrasados em relação a nós e, no entanto, já se acham bem
longe de seu ponto de partida. Durante longos períodos, a alma encarnada é
submetida à influência exclusiva dos instintos de conservação; pouco a pouco esses
instintos se transformam em instintos inteligentes ou, melhor dizendo, se
equilibram com a inteligência; mais tarde, e sempre gradualmente, a
inteligência domina os instintos. Só então é que começa a séria
responsabilidade.
Além disso, o autor da pergunta comete dois erros graves:
o primeiro é o de admitir que o acaso decida pelo bom ou mau caminho que o
Espírito segue em seu princípio. Se houvesse acaso ou fatalidade, toda responsabilidade
seria injusta. Como dissemos, o Espírito fica num estado inconsciente durante numerosas
encarnações; a luz da inteligência não se faz senão aos poucos e a
responsabilidade real só começa quando o Espírito age livremente e com
conhecimento de causa.
O segundo erro é o de admitir que as primeiras encarnações
humanas ocorrem na Terra. A Terra já foi, mas não é mais, um mundo primitivo; os
mais atrasados seres humanos encontrados em sua superfície já se despojaram das
primeiras fraldas da encarnação e os nossos selvagens estão em progresso, comparativamente
ao que eram antes que seu Espírito viesse encarnar neste globo. Que se julgue
agora o número de existências necessárias a esses selvagens para transpor todos
os degraus que os separam da mais adiantada civilização; todos esses degraus intermediários
se acham na Terra sem solução de
continuidade e se pode segui-los observando as nuances que distinguem os
diferentes povos; só o começo e o fim aí não se encontram; para nós o começo se
perde nas profundezas do passado, que não nos é dado penetrar. Aliás, isto
pouco importa, pois tal conhecimento em nada
nos adiantaria. Não somos perfeitos, eis o que é positivo; sabemos que
nossas imperfeições são o único obstáculo à nossa felicidade futura; portanto,
estudemo-nos, a fim de nos aperfeiçoarmos. No ponto em que estamos a
inteligência está bastante desenvolvida para permitir ao homem julgar sensatamente
o bem e o mal, e é também deste ponto que a sua responsabilidade é mais
seriamente empenhada, já que não mais se pode dizer o que dizia Jesus: “Perdoai-lhes,
Senhor, porque não sabem o que fazem.”
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