Tema da semana:
“Piedade filial”.
De 27/02/2012 a 04/03/2012
Irmão
X
-
Minha filha – dizia Dona Matilde à Emilinha -, é
preciso atender ao problema espiritual, orientar o sentimento à luz
do Cristo. A existência terrestre oferece surpresas inúmeras e
almas desprevenidas costumam cair, desastradamente. Não podemos
prescindir da vigilância.
A
jovem, depois de gargalhar ironicamente, replicava:
-
Ora, mamãe, não necessito de sermões encomendados. Esteja
tranquila. Seus conselhos são muito antiquados e talvez
desconheça a senhora as reviravoltas do mundo. Suas
observações são descabidas e, além disto, sou dona de minha
vontade, faço o que entendo.
-
Sim, Emilinha – tornava a mãe paciente -, sei que você é senhora
de si, mas o cuidado materno obriga-me a esclarecê-la, ainda que
você, presentemente, não me possa aceitar as opiniões. Quem é mãe
sofre muito por desvelar-se junto dos filhos...
-
Por que teima em sofrer? – exclamava a interlocutora, cortando-lhe
a palavra – estamos na época de aniquilamento do passadismo.
Como
a nobre genitora enxugasse os olhos em pranto, observava, rebelde:
-
Não precisará desfiar o rosário de lágrimas. Para quê?
Era
assim a situação entre Dona Matilde e a moça altaneira. A generosa
senhora, dedicada servidora do Cristo, já não sabia como
proceder. Viúva, com três filhas solteiras, desvelava-se,
carinhosa, para que lhes não faltasse o necessário. Sacrificava-se
continuadamente pelo bem-estar delas. Privava-se de satisfações
próprias, sujeitava-se ao trabalho mal remunerado, desequilibrava a
saúde pelo excesso de atividade nas obrigações diárias,
substituindo a falta do esposo e atendendo ao próprio dever. Se
Eulália e Cassilda, as duas filhas mais novas, de alguma sorte lhe
compreendiam os sacrifícios, Emilinha, a mais velha, tratava-a
rudemente, sem a menor consideração. Criticava-lhe os mínimos
gestos. Dona Matilde raramente se dava ao prazer de palestrar com as
visitas. Eram tão ásperas as intromissões da filha, tão
grosseiros os modos, ante a presença de estranhos, que a nobre
senhora se mantinha em silêncio, humilhada. Se comentava o dever,
referia-se Emilinha a conceitos modernos da vida; se aventurava uma
opinião inocente em qualquer assunto, tratava a filha de se mostrar
superior.
Quando
voltava Dona Matilde das reuniões evangélicas, reportando-se às
consolações e ensinamentos recolhidos, convertia-se a jovem num
elemento escarnecedor.
-
Ora, mamãe – dizia, sarcástica -, com que então a senhora se
consagrou à teologia? Já não fala senão em assuntos de
religião...
-
Ah! Minha filha – replicava a genitora, cuidadosa na fé -, não
sorrias da verdade para que ela, mais tarde, não venha a sorrir de
ti. Lembra-te de nossos imperiosos deveres para com Jesus!
Após
o riso mordaz, a filha revidava:
-
A senhora adquiriu maneiras de sacerdote. Não concordo com as suas
teorias de sobrevivência e reencarnação.
E
lembrando, enfática, as revistas cientificas que costumava
compulsar, por vaidade, concluía presunçosamente:
-
Não passamos de experiência biológica da Natureza no campo da
racionalidade humana. O resto é ilusão, que devemos relegar ao
fanatismo religioso.
A
viúva, a principio, discutia e argumentava, esclarecendo-a com a
verdade espiritual, mas observando o endurecimento da filha,
retraiu-se, pouco a pouco, dando-lhe o exemplo da própria ação e
abstendo-se de muitas palavras.
E
Emilinha fez no mundo o que lhe pareceu melhor, nos domínios do
capricho e da irreflexão criminosa, contraindo pesados débitos e
agravando responsabilidades, surda às advertências maternas.
O
tempo, a dor e a morte, todavia, são os cobradores da realidade. Ao
influxo desse trio implacável, tanto Dona Matilde quanto as filhas
foram reconduzidas à vida nova, além do túmulo.
Emilinha,
porém, agora afastada do grupo familiar, experimentava rudes
provações em círculo de sombras. Era frequentemente visitada pela
mãezinha generosa, mas lhe identificava a presença, nem lhe ouvia a
voz encorajadora, por trazer a mente absorvida por negras visões e
vozes angustiadas.
Anos
correram, quando Dona Matilde deliberou voltar à esfera carnal, em
continuação do seu plano de serviço redentor. A filha penitente
ficaria, doravante, sem o seu amparo direto. Meditando a situação,
a devotada genitora implorou recursos novos. Não desejava mostrar-se
insensível e, além do mais, Emilinha, sempre desajuizada, era a
filha que mais necessitava dos desvelos maternais. E, ali, na
paisagem tenebrosa, ante os padecimentos da ingrata, a nobre criatura
intercedeu, fervorosa, empenhando o coração.
A
resposta divina não se fez esperar. Emilinha, deslumbrada, reviu a
mãezinha pela primeira vez. Indescritível o contentamento de ambas.
Beijaram-se com júbilo das profundas ansiedades, longamente
reprimidas.
Após
confortar-lhe a alma ulcerada, Dona Matilde deu-lhe a conhecer o
projeto em organização. Regressaria à Terra, recomeçaria as
tarefas inacabadas do processo de redenção que lhe dizia respeito.
Emilinha ouviu, inquieta, e considerou:
-
Mamãe, a senhora me aceitaria, de novo, ao seu lado?
-
Como não, minha filha? – replicou a entidade amorosa – se
permitir o Senhor, reconstituiremos o nosso velho lar, voltando à
paisagem de ouro tempo.
-
Prometo compreendê-la – acrescentou a filha em pranto.
-
Rogaremos essa bênção – falou a genitora, beijando-a, carinhosa.
Nesse
instante, fez-se visível o generoso diretor espiritual daquela
região de sofrimento retificador. Cumprimentou Dona Matilde
atenciosamente, enquanto Emilinha se lhe rojava aos pés, rogando,
comovida:
-
Emissário de Jesus, que me conheceis os padecimentos, ajudai-me para
que eu possa voltar à Terra, em companhia de minha mãe.
Regressará ele aos círculos da carne e, se concordardes, poderei
segui-la, prontificando-me a permanecer em serviço, até que ela me
possa receber, novamente, nos braços maternais... Pelo amor de Deus,
permiti a minha volta!
A
sábia entidade contemplou-a, fraternalmente, e falou:
-
No momento, minha irmão, não lhe será possível retirar-se daqui.
Ainda precisará desgastar, por alguns anos, os envoltórios
inferiores que criou em torno de si mesma. Seus atuais veículos de
manifestação não lhe permitem, por enquanto, a vida em zona menos
pesada que esta. No entanto, mais tarde, poderá voltar, viver ao
lado de Matilde, receber-lhe o verbo carinhoso e ouvir-lhe os
conselhos cristãos.
Emilinha,
que não cabia em si de contente, elevou as mãos ao céu e exclamou:
-
Graças a Deus!
O
diretor espiritual, contudo, retomou a palavra e terminou:
-
Não poderá, todavia voltar à situação de parentesco que já
passou. Não tem títulos de serviço prestado que a autorizem,
agora, a regressar como filha de Matilde, mas retornará você ao
mundo, como criada humilde da sua residência, para que, na
verdadeira condição de obediência, aprenda a valorizar o tesouro
que Deus lhe concedeu.
Do
livro
“Pontos e Contos”. Psicografia de Francisco Cândido Xavier.
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