quarta-feira, 30 de março de 2016

JUDAS ISCARIOTES


Humberto de Campos

Silêncio augusto cai sobre a Cidade Santa. A antiga capital da Judeia parece dormir o seu sono de muitos séculos. Além descansa Getsêmani, onde o Divino Mestre chorou numa longa noite de agonia, acolá está o Gólgota sagrado e em cada coisa silenciosa há um traço da Paixão que as épocas guardarão para sempre. E, em meio de todo o cenário, como um veio cristalino de lágrimas, passa o Jordão silencioso, como se as suas águas mudas, buscando o Mar Morto, quisessem esconder das coisas tumultuosas dos homens os segredos insondáveis do Nazareno.

Foi assim, numa destas noites que vi Jerusalém, vivendo a sua eternidade de maldições.

Os espíritos podem vibrar em contato direto com a história. Buscando uma relação íntima com a cidade dos profetas, procurava observar o passado vivo dos Lugares Santos. Parece que as mãos iconoclastas de Tito por ali passaram como executoras de um decreto irrevogável. Por toda a parte ainda persiste um sopro de destruição e desgraça. Legiões de duendes, embuçados nas suas vestimentas antigas, percorrem as ruínas sagradas e no meio das fatalidades que pesam sobre o empório morto dos judeus, não ouvem os homens os gemidos da humanidade invisível.

Nas margens caladas do Jordão, não longe talvez do lugar sagrado, onde Precursor batizou Jesus Cristo, divisei um homem sentado sobre uma pedra. De sua expressão fisionômica irradiava-se uma simpatia cativante.

- Sabe quem é este? – murmurou alguém aos meus ouvidos. – Este é Judas.

- Judas?!...

- Sim. Os espíritos apreciam, às vezes, não obstante o progresso que já alcançaram, volver atrás, visitando os sítios onde se engrandeceram ou prevaricaram, sentindo-se momentaneamente transportados aos tempos idos. Então mergulham o pensamento no passado, regressando ao presente, dispostos ao heroísmo necessário do futuro. Judas costuma vir à Terra, nos dias em que se comemora a Paixão de Nosso Senhor, meditando nos seus atos de antanho...

Aquela figura de homem magnetizava-me. Eu não estou ainda livre da curiosidade do repórter, mas entre as minhas maldades de pecador e a perfeição de Judas existia um abismo. O meu atrevimento, porém, e a santa humildade de seu coração, ligaram-se para que eu o atravessasse, procurando ouvi-lo.

- O senhor é, de fato, o ex-filho de Iscariot? – Sim, sou Judas – respondeu aquele homem triste, enxugando uma lágrima nas dobras de sua longa túnica. Como o Jeremias, das Lamentações, contemplo às vezes esta Jerusalém arruinada, meditando no juízo dos homens transitórios...

- É uma verdade tudo quanto reza o Novo Testamento com respeito à sua personalidade na tragédia da condenação de Jesus?

- Em parte... Os escribas que redigiram os evangelhos não atenderam às circunstâncias e às tricas políticas que acima dos meus atos predominaram na nefanda crucificação. Pôncio Pilatos e o tetrarca da Galileia, além dos seus interesses individuais na questão, tinham ainda a seu cargo salvaguardar os interesses do Estado romano, empenhado em satisfazer as aspirações religiosas dos anciãos judeus. Sempre a mesma história. O Sanhedrin desejava o reino do céu pelejando por Jeová, a ferro e fogo; Roma queria o reino da Terra. Jesus estava entre essas forças antagônicas com a sua pureza imaculada. Ora, eu era um dos apaixonados pelas ideias socialistas do Mestre, porém o meu excessivo zelo pela doutrina me fez sacrificar o seu fundador. Acima dos corações, eu via a política, única arma com a qual poderia triunfar e Jesus não obteria nenhuma vitória. Com as suas teorias nunca poderia conquistar as rédeas do poder já que, no seu manto de pobre, se sentia possuído de um santo horror à propriedade. Planejei então uma revolta surda como se projeta hoje em dia na Terra a queda de um chefe de Estado. O Mestre passaria a um plano secundário e eu arranjaria colaboradores para uma obra vasta e enérgica como a que fez mais tarde Constantino Primeiro, o Grande, depois de vencer Maxêncio às portas de Roma, o que aliás apenas serviu para desvirtuar o Cristianismo. Entregando, pois, o Mestre, a Caifás, não julguei que as coisas atingissem um fim tão lamentável e, ralado de remorsos, presumi que o suicídio era a única maneira de me redimir aos seus olhos.

- E chegou a salvar-se pelo arrependimento?

- Não. Não consegui. O remorso é uma força preliminar para os trabalhos reparadores. Depois da minha morte trágica submergi-me em séculos de sofrimento expiatório da minha falta. Sofri horrores nas perseguições infligidas em Roma aos adeptos da doutrina de Jesus e as minhas provas culminaram em uma fogueira inquisitorial, onde imitando o Mestre, fui traído, vendido e usurpado. Vítima da felonia e da traição deixei na Terra os derradeiros resquícios do meu crime, na Europa do século XV. Desde esse dia, em que me entreguei por amor do Cristo a todos os tormentos e infâmias que me aviltavam, com resignação e piedade pelos meus verdugos, fechei o ciclo das minhas dolorosas reencarnações na Terra, sentido na fronte o ósculo de perdão da minha própria consciência...

- E está hoje meditando nos dias que se foram... - pensei com tristeza.

- Sim... Estou recapitulando os fatos como se passaram. E agora, irmanado com Ele, que se acha no seu luminoso Reino das Alturas que ainda não é deste mundo, sinto nestas estradas o sinal de seus divinos passos. Vejo-O ainda na Cruz entregando a Deus o seu destino... Sinto a clamorosa injustiça dos companheiros que O abandonaram inteiramente e me vem uma recordação carinhosa das poucas mulheres que O ampararam no doloroso transe... Em todas as homenagens a Ele prestadas, eu sou sempre a figura repugnante do traidor... Olho complacentemente os que me acusam sem refletir se podem atirar a primeira pedra... Sobre o meu nome pesa a maldição milenária, como sobre estes sítios cheios de miséria e de infortúnio. Pessoalmente, porém, estou saciado de justiça, porque já fui absolvido pela minha consciência no tribunal dos suplícios redentores.

Quanto ao Divino Mestre – continuou Judas com os seus prantos – infinita é a sua misericórdia e não só para comigo, porque se recebi trinta moedas, vendendo-O aos seus algozes, há muitos séculos Ele está sendo criminosamente vendido no mundo a grosso e a retalho, por todos os preços em todos os padrões do ouro amoedado...

- É verdade – concluí – e os novos negociadores do Cristo não se enforcam depois de vendê-LO.

Judas afastou-se tomando a direção do Santo Sepulcro e eu, confundido nas sombras invisíveis para o mundo, vi que no céu brilhavam algumas estrelas sobre as nuvens pardacentas e tristes, enquanto o Jordão rolava na sua quietude como um lençol de águas mortas, procurando um mar morto.

Recebida em Pedro Leopoldo a 19 de abril de 1935

Do livro Crônico de Além Túmulo. Psicografia de Francisco Cândido Xavier.



REGRESSO DE SIMÃO PEDRO

Maria Dolores

Simão Pedro desperta, além da vida humana.
Retoma, pouco a pouco, as forças da memória
Terminara, por fim, a luta insana
Do flagelo por grande pesadelo
Recorda a cruz do fim, levantada ao avesso,
Que aceitara na Terra por vitória...
Sabe que está no Além, pensando em recomeço
Do próprio apostolado...

Onde estaria o Mestre Sempre Amado?
E os outros companheiros
De ânimo nobre e forte,
Que o haviam no mundo, precedido,
Sob a perseguição sem pausa e sem sentido,
Ao encontro da morte.

A brisa da manhã suave e cristalina
Trazia-lhe perfume ao leito novo e alvo...
Indagara Simão: “Que surpresa teria?”.
Tocou o próprio corpo, achou-se são e salvo
E chorava, enlevado, em suprema alegria...

Alguns instantes mais e ouviu, enternecidamente,
Cânticos de louvor e saudação;
Alguém surgiu à porta, de repente,
Envolto em doce luz
A doar-lhe conforto e proteção...
Pedro entendeu quem era a bradou-lhe: “Jesus!”.

Erguendo-se, em seguida,
Leve e ágil, gritou: “Ave, Senhor da Vida!...”.
Cristo abeirou-se dele, a enlaça-lo sorrindo,
Depois vieram outros companheiros,
Instrutores, amigos, mensageiros,
Do júbilo fazendo o festival mais lindo...

Pedro enxergou, feliz, os vergéis exteriores...
Eram jardins imensos,
Recheados de flores.

Em profunda euforia,
O ditoso Simão
Tomou a si a mão
Que Jesus lhe estendia
E disse, quase em pranto:
- Senhor; estou cansado,
Não mais me distancies de teu lado...
Trago comigo a dor
Dos que moram no mundo,
Aquele imenso caos, cada vez mais profundo,
De penúria, fadiga e sofrimento...
Não desejo perder as luzes que hoje alcanço,
Permite-me, Senhor ficar contigo,
Neste celeste abrigo...
Necessito de paz, de socorro e descanso...
Ao mundo de onde venho,
Pelas tribulações padecidas no lenho,
Não mais quero voltar...
Desejo aqui viver contigo, neste lar...

Mas Jesus apontou-lhe o imenso espaço à frente
E falou-lhe a sorrir:
- Fica, Simão, se estás contente...
Estes sítios são teus,
Tanto quanto de todos os irmãos
Que serviram, na Terra, à bondade de Deus...

Cristo fez pausa e, logo após,
Explicou: “Quanto a mim,
Não posso repousar;
A construção do bem é o meu lugar...
Ouve, Simão!... Enquanto
Houver na Terra um só gemido
Numa gota de pranto,
Enquanto houver no mundo um coração caído,
Devo esforçar-me por permanecer
No trabalho do amor que é meu dever...
Mas, descansa, Simão!... Ver-nos-emos depois,
Nunca houve distância entre nós dois “...”.

Afastou-se Jesus,
Entretanto, Simão fitando o Excelso Amigo,
Bradou sem vacilar:
- Senhor, eu vou contigo!...

No passo firme do Divino Mestre,
Ambos se retiraram das Alturas,
Buscando a direção das faixas obscuras
Da vastidão terrestre...

Na retaguarda, em paz, ficou a multidão
De almas angelicais, numa doce canção,
Cujo estribilho recordava
Esta expressão de luz dos hinos galileus:
- “Louvado seja o amor!... Bendito seja Deus!...”.


Psicografia de Chico Xavier, mensagem do Espírito Maria Dolores, publicado no livro “Alma e Vida”


sábado, 26 de março de 2016

A Rediviva de Magdala


Amélia Rodrigues

A emoção desdobrava em lágrimas, enquanto sentada, à entrada do sepulcro aberto na rocha, conjeturava: que acontecera? Para onde O teriam levado e por que O trasladaram daqueles sítios, no silêncio da noite?

A inquietação assumia proporções de desespero que a dominava lentamente.

O Sol irisava as nuvens pardacentas e o vento frio sacudia as poucas anêmonas e raras rosas por entre os arbustos.

Na mente ecoavam, sonoras, as vozes dos mancebos de vestes alvas, que lhe disseram: “Não tenhas medo, porque eu sei que buscas a Jesus, que foi crucificado. Ele não está aqui, porque já ressuscitou...”

Ela cria que o Mestre, conforme dissera, ressuscitaria dos mortos. Temia, no entanto, que os judeus houvessem roubado o corpo.

Atemorizadas, Joana de Cusa, Maria, mãe de Marcos, e as outras companheiras desceram à cidade para anunciar o desaparecimento do corpo do Rabi.

Pedro e João subiram o monte ansiosos e constataram os fatos: os lençóis com as substâncias aromáticas do embalsamento no túmulo vazio, o lenço, a pedra afastada...

Estarrecidos, os dois discípulos retornaram à cidade, com as tristes novas; ela ficara chorando.

Os acontecimentos daqueles últimos dias foram muito dolorosos e surpreendentes. Não conseguia compreender nem concatenar os sucessos.

Uma saudade feita de pungente dor estrangulava-lhe o peito.

Foi muito rápido. Teve a impressão de uma aragem que perpassou levemente perfumada.

Voltou-se para trás e por entre as lágrimas viu, a poucos metros, um homem que lhe perguntou:

“- Mulher, por que choras? Quem buscas...?”

Aquela voz, aquele perfil! Não pôde concluir o raciocínio.

“- Maria!”.

“- Raboni”.

O deslumbramento dominou-a. O Mestre vivia e ali estava, radioso como a madrugada nascente!

“- Não me detenhas!... vai para meus irmãos e dize-lhes que eu sigo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus”.

A luz de ouro do amanhecer incidia sobre as suas vestes, que fulguravam, e miríades de pequeninos sóis pareciam incrustados n´Ele.

Ficou esmagada de felicidade. Desejou traduzir com palavras as impressões incomparáveis como as dores vividas até há pouco. Não pôde fazê-lo; a voz estava morta na garganta hirta e constringida. “Vai para meus irmãos e dize-lhes...” – reboava-lhe nos refolhos do espírito.

Pôs-se de pé. Sorriu e, sem mais delongas, tomou o rumo da cidade que despertava, com a alma em cânticos de excelsa alegria.

O leve ar da manhã embalsamada com os últimos perfumes da quadra, o verde dos campos de Acra e Bezeta, a paisagem emoldurada de Sol com o píncaro dos montes debruado a ouro – eis a tela sublime em que Ele volvera.

Venceu a distância com febricidade e atingiu o cenáculo onde os companheiros se acolhiam constrangidos e receosos.

Pairavam no ambiente triste as sombras do desgosto.

Ela disse, logo que atravessou a porta, e sua voz cantava: Eu O vi, vi o Rabi! O Mestre voltou aos que O amam!

Sorria e chorava. Tartamudeando, com o rosto rubro pela emoção, prosseguiu:

- Mandou-me anunciá-LO aos seus irmãos. Elevar-se-á ao Pai. Ouvi bem: Jesus vive!
Todas as suas fibras tremiam, como se fossem disjuntar.

Sua voz vibrava harmonias que não encontravam receptividade no coração dos companheiros. Àqueles, ela conhecia da convivência diária naquelas últimas semanas.

- Conta-me, filha – falou Maria, ansiosa, aquela que era mãe d`Ele – fala-me, tudo. Meu filho voltou?

A voz tremia de compreensível emotividade.

- Não o creio – bradou alguém dentre eles. – O Mestre morreu e deixou-nos nesta dificuldade, a sós... Não creio na Sua volta. Só mesmo eu O vendo...

Ela relanceou os olhos muito brilhantes pelo recinto, procurando o contraditor.

Ele avançou na sua direção, face contraída num rictus de ira e desencanto. Antes que ela dissesse algo, ele se interpôs, frente ao auditório perplexo, atônito, e vociferou:

- Mesmo que Ele viesse...

Interrompeu-se numa pausa.

- ... iria apresentar-se a quem? Certamente que a Simão que Ele elegera para conduzir-nos; ou a João, a quem sempre distinguiu com o Seu amor; ou a Sua mãe...

Transparecia no tom sarcástico e zombeteiro da palavra cortante todo o azedume do seu espírito atormentado e infeliz.

E depois de pausa maior, ante a estupefação de todos:

-... Mas a ti Ele apareceu? Não, não o creio. Não creiamos. Não é possível que Ele tenha aparecido exatamente a ela. Não estiveram outras no sepulcro? João e Pedro lá não foram? Por que a ela?...

Foi como uma chuva de gelo e mal-estar que caísse sobre todos.

Um silêncio incômodo invadiu a sala.

Ela recuou.

As indagações finais foram cruéis punhaladas. “A ti?” “Por que a ela?” Eram ácidos queimando e requeimando.

Mesmo assim, com grande esforço, vencendo o próprio sofrimento, retrucou com voz débil:

- É verdade! Mesmo que não o creias, eu O vi. Apesar da minha antiga e infeliz condição – balbuciou humilhada – a mim me apareceu há pouco o Rabi...

- Eu o creio, filha – acentuou a sua saudosa mãe. – Secreto pressentimento diz-me que meu Filho vive. Eu o creio, porque sei que a nossa dor e saudade estão com Ele, como a Sua saudade se demora em nós.

Envolveu-a docemente e procurou ouvi-la com atenção e carinho.

Mentalmente ela refez os caminhos percorridos – longos e tortuosos!

Muitas vezes a bofetada lhe estrugiria em plena face. Era mesmo natural que lhe duvidassem da palavra. Ela sentia toda podridão. Não fora o chamado do rabi e estaria, talvez, na enxerga da infinita descompostura ou na total destruição. E muitas vezes, no futuro, verteria o pranto da recuperação, até às fezes, por ter sido louca.

É comum proclamar-se virtude, meditava, e impedir-lhe a propagação.

Quantas novas tentações estava procurando sublimar, só ela o sabia.

Facilmente se impreca contra o erro, mas bem poucos são aqueles que alongam as mãos convertidas em alavancas de soerguimento para ampararem as vítimas da ignorância e da criminalidade.

Não que desejasse justificar-se.

Sua conduta fora inclassificável. Ela fora abjeta, sim, reconhecia-o.

Em Magdala, seu nome e sua vila faziam parte integrante do roteiro de degradação da cidade.

Ali se estabelecera...

*

Magdala era um centro de comércio e indústria de muita prosperidade. Para lá acorriam mercadores e aventureiros de todo o Oriente. Reclinada sobre as bordas do mar, gozava de clima ameno e desfrutava de águas piscosas privilegiadas.

Estação de repouso, recebia viajantes ilustres e nobres gregos, romanos, babilônicos, fenícios, medos que lhe disputavam as amenidades, conseguindo negócios rendosos e prazeres fáceis.

Compreensivelmente afluíam, também, aventureiros e cortesãs de corpos cansados que exibiam em luxuosas residências a mercadoria do próprio sofrimento, em noites de orgia e loucura, no caminho da queda total nas valas morais.

Depois de dolorosas e rudes experiências, ela conseguira adquirir, na cidade famosa, luxuoso palacete, favorecido com jardins e pomar imenso onde sicômoros antigos e vetustos confraternizavam com plátanos, roseiras e madressilvas pequeninas.

Em sua casa recepcionava os homens mais requestados que transitavam pela urbe agitada.

Era muito jovem; o licor da mocidade corria capitoso e sedutor, atraindo compradores ricos, que se disputavam a vaidade de consegui-lo.

A noite sempre lhe fora comparsa discreta, pois que, ao cair das sombras e ao acender das lâmpadas e tocheiros, a velha porta de carvalho, nos muros externos, dava acesso àqueles que, na via pública, por preconceitos e hipocrisia, exibiram a honra de apedrejá-la logo houvesse ocasião...

Possuía na sua vivenda de linhas gregas, sóbrias, tudo quanto a ambição pode cobiçar: joias exóticas de alto preço, perfumes raros e essências originais em vasilhames de alabastro trabalhado, tapetes persas e babilônios, arcas abarrotadas de sedas e damascos, móveis de mogno artisticamente lavrados, moedas de todas as procedências, servos originários de vários países... tudo quanto a vaidade diz que produz felicidade. Mas não se sentia feliz nem ditosa.

Na imensa residência rica, cheia de preciosidades, se sentia vazia, vulgar e atormentada.

A sua condição de mulher rica não lhe mudava o caráter infame de pobre meretriz, mercadora dos perfumes da ilusão.

Sofria indizível amargura.

Em longas e tristes noites de soledade, parecia escutar vozes zombeteiras que lhe chicanavam a desdita e quase sempre experimentava os incomparáveis tormentos da obsessão pertinaz na mente e carnes cansadas e doloridas.

Diziam-na endemoninhada e temia sê-lo.

As mulheres, talvez mais felizes, além de seus muros, invejavam-na, detestando-a ao mesmo tempo e os homens inquietavam-na, perseguindo-a.

Tinha ânsia de paz no imenso cairel do abismo das paixões aniquiladoras e desejava o amor – um estranho amor – um estranho amor que ambicionava secretamente e sem que o encontrasse.

O amor que conhecia era, em verdade, luxúria e dissabor.

Acreditava no amor que fosse feito de paz e ternura, doação plena e tranquilizante. Não esperava fruí-lo, todavia. Era sumamente infeliz, aguardando, um dia não muito longe, a selvajaria de algum guerreiro déspota impiedoso ou as pedras da falsa pudicícia, na praça...

De coração generoso, gostava de ajudar e por ser infeliz compreendia a dor dos sofredores e se apiedava da aflição dos desditosos. Suas mãos e dedos adereçados derramavam moedas e ofertavam pães, e se as portas da sua casa se fechavam frequentemente aos servos do prazer, seus servos tinham severas ordens de abri-las à dor e ao sofrimento que buscasse ajuda ou guarida.

Quando a serenidade lhe possuía a mente, voltava à infância, risonha, como em sonhos e enlevos festivos, surpreendendo-se, depois, com a realidade causticante.

*

O nome d`Ele soava na acústica dos corações como a melodia suave de uma harpa tangida ao longe.

A dor foge, ao contato das suas mãos, e a luz dilata pupilas mortas; uma alegria espiritual invade aqueles que convivem com Ele e uma esperança estranha e doce empolga os corações, onde Ele se encontra – comentavam todas as vozes.

As servas falavam sobre Ele com estranho fascínio no olhar, antes mortiço e sem vitalidade. Chamavam-nO Libertador e completavam que não era um libertador comum, quais aqueles que prometem quebrar as algemas de ferro da escravidão política e social, mas um singular salvador que oferecia paz perene e libertação total: tranquilidade e segurança íntima independentes da situação física em que transitassem.

Nas praças ou nas praias, pelos caminhos as multidões seguiam-nO fascinadas, como se Ele exalasse felicidade, naqueles dias rudes de provanças e misérias.

Numa noite de perfumes primaveris, instada por uma serva de confiança, dedicada e fiel, permitiu um diálogo com Ele.

Trazia o coração opresso e sentia álgida constrição das forças ignotas que lhe atenazavam o espírito, perturbando-lhe a razão e amargurando-lhe as horas.

A jovem, que O escutara às vésperas, falou com desembaraço: - Senhora, hoje Ele pernoita perto daqui, em Cafarnaum. Ide vê-LO, senhora!

A voz era quase súplice.

Dançavam-lhe na mente as fantasias do seu desespero, e assim mesmo, considerou:

- Receber-me-á, o teu Rabi? – dissera com desprezo de si mesma. – Os Rabis são puros e detestam os infelizes, levantando a voz para ameaçar com castigos e punições aqueles que, iguais a mim, tombaram nas rampas da desgraça...

- O Rabi – esclareceu a jovem, entusiasta -, ama os sofredores e confabula com todos, informando que as impurezas muitas vezes estão ocultas e ninguém as vê, dignos todos, no entanto, de compreensão e ajuda.

- Mas, eu sou diferente. Tu sabes que sou... (Lágrimas fluíram quentes e confortadoras como há muito não expunha).

- Senhora, Ele diz que veio encontrar o que estava perdido.

- Sou uma condenada... dominada por Espíritos imundos!

- Ele é a Porta de redenção.

-?...

Vamos, senhora! Ele vos receberá!

A noite balouçava luzes miúdas no firmamento escuro, quando uma embarcação singrou as águas, no rumo de Cafarnaum.

O diálogo fora breve. Toda uma vida, porém, perpassou nele...

Ao retornar não era a mesma.

Estranha e poderosa transformação imprimira no seu íntimo esperanças e ideais novos, dantes jamais sonhados.

Sentira-se morrer enquanto O ouvia e sentira-se viver enquanto retornava.

Na manhã seguinte Magdala soube, pasmada, a notícia da conversão da pecadora. Distribuíra tudo quanto possuía e, com o estritamente necessário, iniciara vida nova.

- Retornará – zombavam uns.

- Sempre foi louca! – mofavam outros.

- A cidade não a perderá; voltará às noites de prazer! – arrematavam os mais cínicos.
Transcorridos poucos dias...

*

Magdala era uma cidade paradoxal.

Rica e deslumbrante, hospedava esses caracteres exóticos e atrabiliários que pululam em todas as cidades de luxo e lazer, em todos os tempos.

Havia em Magdala um homem de hábitos estranhos. Chamava-se Simão e se permitia o devaneio de recepcionar pessoas ilustres que transitavam pela urbe famosa. Simão era fariseu, tendo o orgulho de zelar pelas tradições e exibir a fortuna pessoal.

Pelo seu palacete passaram respeitáveis figuras das artes e do pensamento, gênios das guerras e das leis, sacerdotes e magos itinerantes. E os banquetes com que os homenageou, homenageando a si mesmo, foram comentados por toda a cidade dias a fio.

Simão, como todas as pessoas de Magdala, ouvira falar sobre Jesus. Empolgado com a notoriedade do Galileu, teve a ideia de recebê-lO em seu lar, apresentá-lO aos amigos, dialogar com Ele.

Talvez, pensava Simão, fosse o Esperado Libertador, conforme lhe afiançara um rico mercador, e seria prudente ser-Lhe amigo para estar em triunfo à hora do seu triunfo; se fosse um Rabi autêntico, ser-lhe-ia honroso receber um homem santo, naqueles dias de franco profetismo em Israel.

Sabendo que o Mestre se encontrava perto de Magdala, enviou emissários com o convite auspicioso.

Tendo-o aceito, no dia aprazado, o Rabi e dois discípulos, ante a curiosidade dos que acorreram à estrada por onde deveriam passar, chegaram à casa engalanada e foram recebidos com risos de júbilo e mal disfarçado motejo.

Introduzidos à intimidade doméstica, o repasto teve início.

Os divãs espalhados receberam os convidados confortavelmente e os servos, conduzindo as pequenas mesas com iguarias e frutos secos, puseram-se, obsequiosos, a servir.

Harpas dedilhadas suavemente enchiam a sala ampla, entre colunas esguias, de melodia triste.

O ar, porém, pesava.

Simão olhava de esguelha o Estranho que parecia distante.

Silêncio incômodo entre os convidados tornava a festa insípida, desagradável.

As motivações de palestras redundavam em respostas monossilábicas, sem interesse.

Quase a fim do banquete, ouviram-se gritos e vozes em altercação violenta, quando, subitamente, irrompeu sala a dentro a figura desgrenhada e chorosa de estranha mulher.

Os cabelos desnastrados se colavam à larga testa banhada de suor; os olhos brilhavam com intensidade, fora das órbitas; os zigomas salientes, corados, pareciam maçãs maduras; as vestes desalinhadas...

Ela olhou em derredor, como se procurasse alguém e, semienlouquecida, arrojou-se aos pés do Rabi, que permaneceu, impassível, na posição em que se encontrava.

Tudo fora tão rápido, que Simão não tivera tempo de tomar qualquer atitude.

Estava estupefato! Conhecia, sim, aquela mulher. Visitara antes sua casa e lá participara de alguma noite orgíaca...

Estranha sensação visitou-o num átimo.

Suor frio e abundante começou a escorrer, desagradável.

Seu lar honrado acolhia uma mulher de má vida.

Desejou expulsá-la. Intentou mesmo fazê-lo. Temeu, porém.

Conhecia a coragem dela, a sua audácia, pois que se atrevera a chegar até ali...

Era Maria!

Transtornada pela vitória que experimentara desde o encontro com o Rabi, sentira-se liberta dos sete Espíritos demoníacos que a infelicitavam. Era outra, inteiramente renovada.

Quanto sofrera sob o jugo deles!

Mortificações, desesperos sem-nome, crises terríveis de languidez e pavor experimentara nas suas malhas cruéis.

Desde, porém, que os Seus olhos claros, na noite que O fora ver, incidiram sobre ela, que se sentia libertada.

Uma alegria nova, como jamais dantes experimentara, dominou-lhe o espírito aturdido e sofredor.

Sentia-se esperançada, embora recém-saída do pantanal.

Conjecturando, recordava-se das palavras d`Ele, no encontro inolvidável: “Há flores perfumadas e de brancura imaculada que espalham aroma sobre o lodo que lhes segura as raízes...”

Refaria os caminhos. Lutaria!

Após libertar-se da canga da posse desejou, publicamente, apresentar os sinais inequívocos do seu renascimento.

O banquete na casa de Simão, que ela conhecia, significava sua oportunidade.

Não trepidou. Poderia ser expulsa ou mesmo lapidada. Não tinha de que recear. Mesmo que fosse necessário resgatar com sangue suas culpas, estava disposta a lavar a própria vergonha.

Animada por tais pensamentos seguiu arrebatada com a mente em febre de esperanças.

Ei-la, agora, ali. Todos a fitavam com desagrado. As lágrimas saltavam-lhe dos olhos e caíam sobre os pés dEle. Enxugava-os com a basta cabeleira.

Quebrou o gargalo do vaso de alabastro que conduzia e derramou o unguento nos pés do Rabi, balsamizando-o com piedoso carinho. O perfume de rara essência invadiu o recinto e ela prosseguiu repetindo o generoso gesto.

Ele não dizia nada, como se nada sentisse.

O almoço foi encerrado friamente. Os demais convidados faziam questão de não ocultar o falso constrangimento.

Entre dentes e irado, Simão resmungava:

“ – Se este fosse profeta bem saberia quem e qual é a mulher que lhe tocou, pois é uma pecadora”.

Jesus relanceou tranquilamente os olhos muito puros, e com serena entonação de voz, indagou:

“ – Simão! Uma coisa tenho a dizer-te”.

“ – Dize-a, Mestre”.

“ – Um certo credor tinha dois devedores: um devia-lhe quinhentos e o outro cinquenta dinares. Não tendo eles com que pagar a dívida, perdoou-lhes a ambos. Dize, pois, qual deles o amará mais?”.

Simão sorriu pela primeira vez. Era astuto, hábil nos negócios. Instado à conversação direta, respondeu com alegria:

“ – Tenho para mim que é aquele a quem mais perdoou”.

“ – Julgaste bem”.

O Rabi dirigiu à mulher sofredora e inquiriu Simão, outra vez:

“- Vez esta mulher? Entrei em tua casa, e não me deste água para os pés; mas esta mos regou com lágrimas e mos enxugou com os seu cabelos. Não me deste ósculo, mas esta, desde que entrou, não cessa de me beijar os pés. Não me ungiste a cabeça com óleo, mas esta ungiu-me os pés com unguento... Por isso te digo que os muitos pecados lhe são perdoados, porque muito amou; mas aquele a quem pouco é perdoado pouco ama”.

Simão estava estarrecido. Não compreendia aquelas palavras claras, talvez pelo impacto das desordenadas emoções que estrugiam no seu espírito atormentado e pusilânime.

Abriu desmesuradamente os olhos e fitou o Rabi.

O Mestre pôs-se de pé e oferecendo as mãos à pecadora, falou com doçura:

“- Os teus pecados te são perdoados... vai-te em paz!”.

Ela se levantara de um salto, exuberante de felicidade, e explodindo sonora gargalhada saiu, como chegou: a correr.

Desapareceu de Magdala.

Todas as tardes, porém, na multidão, ajudando crianças enfermas, oferecendo olhos a cegos e mãos a trôpegos, arrependida e ansiosa pela própria renovação total, pôs-se a seguir a Jesus de cidade em cidade, por onde Ele fosse...

Há poucos dias entrara com os demais galileus, jubilosa, em Jerusalém.

Havia, porém, tanta tristeza n`Ele, ao cavalgar com o jumento, que se entristecera, também.

*

Continuou repassando os acontecimentos pela mente atribulada.

A denúncia de Judas, a prisão dEle, o julgamento arbitrário, a caminhada para o monte da Caveira...

Daria a vida para ter-Lhe diminuído os sofrimentos.

Quando, com as outras mulheres que O seguiam, O vira cair, correra a sustentá-LO.

Ele, estoico e sublime como sempre, lhes falou por entre lábios macerados e feridos:

“- Filhas de Jerusalém, não choreis por mim; chorai antes por vós mesmas, e por vossos filhos. Porque dias virão em que direis: Bem-aventuradas as estéreis e os ventres que não geraram e os peitos que não amamentaram! Direis aos montes: caí sobre nós e aos outeiros: cobri-nos. Porque se ao madeiro verde fazem isto, que se fará ao seco?”.

Gargalhadas zombeteiras estrugiram na multidão...

Por fim a dolorosa hora da Cruz.

Ante as lágrimas de Sua Mãe, fizera o legado da fraternidade universal, entregando-a a João e este àquela. Ele ficara no madeiro da infâmia.

Fitando-o exangue, já exânime, nos instantes extremos, receara enlouquecer de dor, ao lado de Sua Mãe, quando notou que a cruz, símbolo tradicional de punição, se tornava rota eloquente de sublimação, após Ele: uma ponte para a Imortalidade.

Quando a cabeça d`Ele pendeu, desejou cingir-lhe outra vez os pés, e osculá-los com ternura, mas se sentiu imobilizada...

*

Abriu os olhos doridos de chorar ante as recordações.

- Bom animo, filha! – falou ternamente a Mãe sublime. – As nossas dores estão com Ele.

- Eu O vi, mãe! – gaguejou.

- Creio-o, filha. Creio, sim. Sei que meu filho vive!

*

Os dias passavam agora feitos de saudade e recordações. Voltou com os companheiros à Galileia franca e generosa, às águas inquietas do mar que Ele tanto amara.

A frase terrível, com que o companheiro invigilante a satirizara, continuava perseguindo-a mentalmente.

Lá Ele reapareceu e falou longamente a todos, quase quinhentos, concitando-os à pregação dos seus “ditos” e à edificação do Reino da luz nas fronteiras do espírito.

“Ide e pregai a todas as gentes...”.

“No mundo só tereis aflições...”.

“Lembrai-vos de mim, eu venci o mundo...”.

“Eu vos mando como ovelhas mansas...”.

Soavam no ar os novos ensinos...

Ontem foram as notícias trazidas pelos jornaleiros dos caminhos de Emaús, hoje era a pesca incomparável... Ausente, Ele jamais estivera tão próximo inundando os corações com Sua presença inconfundível.

Era o ministério que para eles começava...

Quarenta dias depois dos terríveis acontecimentos, Ele apareceu à Sua Mãe e aos Onze, que estavam em Jerusalém, e levou-os até Betânia. Todos O seguiram ansiosos, felizes, como nos dias idos...

Não era, porém, a jornada, como outrora. Entre eles havia felicidade e também temor. A felicidade do reencontro e o temor da fraqueza de que deram mostras.

Chegando ao cume da montanha, com a cidade resplandecente aos seus pés, os companheiros perguntaram:

“Senhor, restaurarás Tu, neste tempo, o reino a Israel?”.

O Mestre olhou-os com aquela tristeza do passado. Os amigos ainda não compreendiam qual era o Seu Reino, reino sem dimensão geográfica nem política, a perder-se nas galáxias do firmamento...

Respondeu-lhes com o acento de excelsa compreensão:

“- Não vos pertence saber os tempos ou as estações que o Pai estabeleceu pelo seu próprio poder”.

E ante a muda interrogação de todos, acrescentou:

“- Recebereis as virtudes do Espírito Santo, que há de vir sobre vós; e ser-me-eis testemunhas em Jerusalém como em toda a Judéia, Samaria, até aos confins da Terra”.

Todos estavam com os olhos fitos n`Ele e, só então, perceberam que Ele ascendia lentamente, as mãos voltadas para eles num gesto de afago, as vestes luminosas, até desaparecer nas alturas...

Depois de lutas tiranizantes consigo mesma, experimentou a soledade e o abandono, quando todos se foram a pregar e viver a Mensagem.

Estando a sós, a pervagar pelas praias longas que O recordavam, encontrou leprosos que vinham de longe buscar socorro nas mãos d`Ele e, como chegassem tarde, abraçou-os como irmãos e partiu para o vale dos imundos, cantando salmodias de felicidade.

*

Rediviva desde quando O conhecera, ao morrer às portas da cidade de Éfeso, demandou a Vida nos braços de Jesus aquela cuja experiência e amor total ao Mestre são lições vivas, vencendo os séculos...


(Psicografia de Divaldo Franco, mensagem do Espírito Amélia Rodrigues, publicado no livro Primícias do Reino)

quinta-feira, 24 de março de 2016

O OBSIDIADO GERASENO

 Amélia Rodrigues

O mar era grande espelho levemente ondulado, a refletir a poeira de luz do Sol nascente, dardejando ouro. O mês de Kislev, portador das tempestades, é também o mensageiro da fartura, carreador dos ventos perfumados e leves.

Correm suaves ruídos pelos arredores e a penedia triste de Gergesa ou Gerasa fica para trás.

As encostas negras e viciosos, surradas pelas virações marinhas, apresentam-se lúgubres, sem vegetação alguma. Dir-se-ia um solo ingrato onde nada medra, à exceção de espinheiros e cardos silvestres.

No alto, um magote de homens, mulheres e crianças alonga os olhos sobre a face líquida do mar, preciosa concessão do Jordão ao longo do seu abençoado curso, interroga sem palavras.

O barco desliza suavemente, quase em silêncio, com a grande vela enfunada, à semelhança de uma asa móvel sombreando as águas.

Na popa, a figura de jesus assemelha-se a uma exclamação de dor. Fitando a terra agreste e nua, sente o sofrimento da gente que ali habita.

Programara, desde antes, aquela visita às terras sobre as montanhas de Bazan, na Decápole, uma vez que acalentava a possibilidade de até ali levar a mensagem da ao-nova.

Proclamar e difundir as primícias do Reino constituía Sua ventura, pois que para isso viera. Viver com o povo, sofrer as aflições do povo, mas, sobretudo, esclarecer e libertar o espírito do povo das grilheiras vigorosas da ignorância e da superstição.

O povo era o seu rebanho. Para esse rebanho viera dar a vida. Era, todavia, necessário que as ovelhas conhecessem o pastor a fim de poder identificar-Lhe a voz, obedecer-Lhe ao chamado. Experimentava, porém, ultriz sofrimento porque o povo não O compreendia: o sofrimento que decorre do amor desdenhado.

Gerasa não O recebera, embora o tom festivo com que anunciara a chegada e a oferenda preciosa que doara ao acercar-se dos seus limites.

Não quebrara os liames que atavam o obsidiado à obsessão, como um raio alvinitente penetra o corpo da noite e anuncia a força da sua presença?

Os gerasenos comerciavam com porcos e preferiam os suínos a Ele, o Amigo que desejavam ignorar...

Vento sinfônico encrespa as águas, melodias vibram na tristeza que envolve o barco e açoita os cabelos bastos dos homens extremunhados e silenciosos.

Gerasa os sulcara com uma grande dor...

Alguém perguntou, na pequena planura do penhasco, fitando o barco a mergulhar na distância:

- Quem era?
- Não sabemos – respondeu outro.
- Por que nos queria falar? Trazia-nos algo?
- Não indagamos, nem mesmo o deixamos falar.
- Que desejaria conosco?
- Não podemos atinar. Talvez tenha sido melhor expulsá-lo de nossos sítios, como fizemos.
- Talvez!...

E como se voltassem a contemplar a embarcação, que poderia ser considerada como um ponto final numa lição em meio, uma mulher sugeriu:

- Parecia-se com um Rabi, desses que andam pela Galileia...

- Que nos pode oferecer de bom a Galileia? – revidou, rabioso, um representante da cidade. – O que podemos afirmar são os prejuízos que Ele nos deu.

- E onde se encontra o endemoninhado? – inquiriu outrem.

- Busquemo-lo! – exclamou, encolerizado, um jovem. – Façamo-lo confessar. Afinal, ele é portador de Espíritos imundos e com ele podemos ser rigorosos.

- Tenhamos cuidado – advertiu um comerciante de porcos. Os danos do dia são vultuosos; perdemos nossas melhores varas e isto vai afetar a economia de nossa cidade. O doente parece recuperado. Deixemo-lo...

O barco era um quase nada no mar.

O dia bordava a terra de luz e a natureza estuava prenhe de festa. Mil vozes onomatopaicas entoavam um canto de alegria.

Dos penhascos de Gerasa avistava-se o outro lado do mar.

Os gerasenos voltaram à cidade, a dois quilômetros dali, onde se erguia o casario de arquitetura grega, cercado de ricas pastagens a se perderem na borda do deserto.

Jesus e os discípulos retornaram a Cafarnaum.

Tudo fora muito simples, recordava.

A alva ainda não descerrara os mantos pesados do seu rosto de luz, quando ele ouvira rumor de passos, no pavor em que vivia.

Erguera-se de um túmulo vazio, dos muitos existentes nas cavernas esburacadas da rocha, entre os outeiros usados como criptas sepulcrais.

Subitamente sentira a força das fúrias, que o dominavam em hedionda e nefasta subjugação.

Podia formular uma ideia do que fizera, pelas equimoses e hematomas pelo corpo dorido e os membros lassos, o gosto de sangue na boca e o imenso cansaço que o possuía...

Quanto havia descido! – meditava. – Os jogos do prazer nos antros de perdição levaram-no àquele estado. Atormentado por forças subjugadoras, abandonara o lar e os parentes, colocara nos lábios dos pais a taça de fel de amarguras inomináveis, a ponto de fazê-los sucumbir de vergonha e horror nos dédalos dos sofrimentos.

Começara a cair muito cedo até chafurdar entre os porcos e buscar as sombras das sepulturas, onde se refugiavam os endemoninhados, carregando nos pulsos e nos tornozelos pedaços de cordas imundas e um elo de ferro, como os que atavam os animais ferozes...

Recordando, agora, as torpezas e sofrimentos, não podia evitar as lágrimas que vertia em abundância.

Vagara pelos bosques próximos, disputando com os animais restos alimentícios; ou, desvairado, passara dias intermináveis em indescritíveis pelejas, na luta contra animais selvagens que o aniquilavam...

Concatenando os pensamentos, lembrava-se somente da aragem fresca que o envolvera, e daqueles dois olhos tranquilos e bons que o banharam de amena harmonia.

- Senhor!... – balbuciara, nervoso, enfraquecido, empapado de suor – Que queres que eu faça?

- Torna para tua casa, e conta quão grandes coisas te fez Deus.

- Não tenho ninguém – retrucara. – Os meus me odeiam pelo muito que os fiz sofrer. Deixa-me seguir contigo, que te apiedaste de mim.

- Não, por enquanto, não! Vai primeiro anunciar o que recebeste, para que todos saibam o que pode fazer o Filho do Homem.

Erguera-se de um salto e saíra a correr, seguindo de perto pelos proprietários dos porcos que haviam despenhado no abismo. Ignorava, porém, como as coisas haviam-se passado.

Estava livre. Isto sim: em liberdade! Gritava, explodia de felicidade. E sorria.

Os outros o fitavam a medo e o escutavam sem nele crer, embora a sanidade de que dava mostras.

Legião, assim era chamado tendo-se em vista os espíritos imundos que o dominavam, era temido e detestado.

Foram, porém, inúteis as suas explicações, o atestado eloquente do seu juízo em equilíbrio. E quando Ele se acercou da porta da cidade, receberam-no sem consideração, nem respeito, expulsando-o em seguida.

Nos dias que se seguiram, ele anunciou, por onde esteve, a promessa do Filho do Homem.

Os gerasenos, porém, revoltados por não terem fruído a presença e as dádivas d’Ele, agasalharam no imo, contra o ex-endemoninhado, surdo despeito, que não tardou a explodir em cólera generalizada.

- Desde que Ele te curou – foram peremptórios – e vale tanto para ti, mais do que nós, vai-te para o seu lado, deixa-nos a nós e as nossas terras.

O ódio popular é como furacão sem rota, que traga na sua voragem o que encontra.

- Vai-te! – gritaram as vozes, - esquece-te de nós.

Uma pedra cortou o ar, bagas de sangue quente tingiram o chão e o pó fez-se lama na terra.

Os olhos do recém-curado se injetaram, a boca retorceu-se em estranho ríctus e ele exclamou:

- Maldita sejas, Gerasa, que expulsas os filhos e desprezas os Enviados!

Aquela voz trovejou poderosa e a cidade presente à cena de vergonha e dor não mais esqueceria as visões daqueles dias, as expressões dos dois homens aos quais fechava suas portas.

Depois de caminhar pelas terras da Decápole, narrando o que lhe fizera o Galileu, ele demandou às praias do outro lado do mar e perdeu-se na multidão que acompanhava as pregações no lago e nas cidades, nos montes e na orla das estradas, oferecendo suas mãos e seus braços aos aflitos e combalidos que necessitassem de ajuda.

Não mais se afastaria dos sofredores, seus irmãos de infortúnio.

Procurava dar-lhes a fortuna da esperança como ele mesmo a recebera do Rabi.

Seguia-O, deslumbrado e reconhecido pelo que recebera e passou a amar como fora amado, trabalhando, também, pela extensão do Reino de Deus que Ele anunciava.


(Psicografia de Divaldo Franco, mensagem do Espírito Amélia Rodrigues, publicada no livro “Primícias do Reino”)