Humberto de Campos
Silêncio augusto cai sobre a Cidade Santa. A antiga
capital da Judeia parece dormir o seu sono de muitos séculos. Além descansa
Getsêmani, onde o Divino Mestre chorou numa longa noite de agonia, acolá está o
Gólgota sagrado e em cada coisa silenciosa há um traço da Paixão que as épocas
guardarão para sempre. E, em meio de todo o cenário, como um veio cristalino de
lágrimas, passa o Jordão silencioso, como se as suas águas mudas, buscando o
Mar Morto, quisessem esconder das coisas tumultuosas dos homens os segredos
insondáveis do Nazareno.
Foi assim, numa destas noites que vi Jerusalém,
vivendo a sua eternidade de maldições.
Os espíritos podem vibrar em contato direto com a
história. Buscando uma relação íntima com a cidade dos profetas, procurava
observar o passado vivo dos Lugares Santos. Parece que as mãos iconoclastas de
Tito por ali passaram como executoras de um decreto irrevogável. Por toda a
parte ainda persiste um sopro de destruição e desgraça. Legiões de duendes,
embuçados nas suas vestimentas antigas, percorrem as ruínas sagradas e no meio
das fatalidades que pesam sobre o empório morto dos judeus, não ouvem os homens
os gemidos da humanidade invisível.
Nas margens caladas do Jordão, não longe talvez do
lugar sagrado, onde Precursor batizou Jesus Cristo, divisei um homem sentado
sobre uma pedra. De sua expressão fisionômica irradiava-se uma simpatia
cativante.
- Sabe quem é este? – murmurou alguém aos meus
ouvidos. – Este é Judas.
- Judas?!...
- Sim. Os espíritos apreciam, às vezes, não
obstante o progresso que já alcançaram, volver atrás, visitando os sítios onde
se engrandeceram ou prevaricaram, sentindo-se momentaneamente transportados aos
tempos idos. Então mergulham o pensamento no passado, regressando ao presente,
dispostos ao heroísmo necessário do futuro. Judas costuma vir à Terra, nos dias
em que se comemora a Paixão de Nosso Senhor, meditando nos seus atos de
antanho...
Aquela figura de homem magnetizava-me. Eu não estou
ainda livre da curiosidade do repórter, mas entre as minhas maldades de pecador
e a perfeição de Judas existia um abismo. O meu atrevimento, porém, e a santa
humildade de seu coração, ligaram-se para que eu o atravessasse, procurando
ouvi-lo.
- O senhor é, de fato, o ex-filho de Iscariot? –
Sim, sou Judas – respondeu aquele homem triste, enxugando uma lágrima nas
dobras de sua longa túnica. Como o Jeremias, das Lamentações, contemplo às
vezes esta Jerusalém arruinada, meditando no juízo dos homens transitórios...
- É uma verdade tudo quanto reza o Novo Testamento
com respeito à sua personalidade na tragédia da condenação de Jesus?
- Em parte... Os escribas que redigiram os
evangelhos não atenderam às circunstâncias e às tricas políticas que acima dos
meus atos predominaram na nefanda crucificação. Pôncio Pilatos e o tetrarca da Galileia,
além dos seus interesses individuais na questão, tinham ainda a seu cargo
salvaguardar os interesses do Estado romano, empenhado em satisfazer as
aspirações religiosas dos anciãos judeus. Sempre a mesma história. O Sanhedrin
desejava o reino do céu pelejando por Jeová, a ferro e fogo; Roma queria o
reino da Terra. Jesus estava entre essas forças antagônicas com a sua pureza
imaculada. Ora, eu era um dos apaixonados pelas ideias socialistas do Mestre,
porém o meu excessivo zelo pela doutrina me fez sacrificar o seu fundador.
Acima dos corações, eu via a política, única arma com a qual poderia triunfar e
Jesus não obteria nenhuma vitória. Com as suas teorias nunca poderia conquistar
as rédeas do poder já que, no seu manto de pobre, se sentia possuído de um
santo horror à propriedade. Planejei então uma revolta surda como se projeta
hoje em dia na Terra a queda de um chefe de Estado. O Mestre passaria a um
plano secundário e eu arranjaria colaboradores para uma obra vasta e enérgica
como a que fez mais tarde Constantino Primeiro, o Grande, depois de vencer
Maxêncio às portas de Roma, o que aliás apenas serviu para desvirtuar o
Cristianismo. Entregando, pois, o Mestre, a Caifás, não julguei que as coisas
atingissem um fim tão lamentável e, ralado de remorsos, presumi que o suicídio
era a única maneira de me redimir aos seus olhos.
- E chegou a salvar-se pelo arrependimento?
- Não. Não consegui. O remorso é uma força
preliminar para os trabalhos reparadores. Depois da minha morte trágica
submergi-me em séculos de sofrimento expiatório da minha falta. Sofri horrores
nas perseguições infligidas em Roma aos adeptos da doutrina de Jesus e as
minhas provas culminaram em uma fogueira inquisitorial, onde imitando o Mestre,
fui traído, vendido e usurpado. Vítima da felonia e da traição deixei na Terra
os derradeiros resquícios do meu crime, na Europa do século XV. Desde esse dia,
em que me entreguei por amor do Cristo a todos os tormentos e infâmias que me
aviltavam, com resignação e piedade pelos meus verdugos, fechei o ciclo das
minhas dolorosas reencarnações na Terra, sentido na fronte o ósculo de perdão
da minha própria consciência...
- E está hoje meditando nos dias que se foram... -
pensei com tristeza.
- Sim... Estou recapitulando os fatos como se
passaram. E agora, irmanado com Ele, que se acha no seu luminoso Reino das
Alturas que ainda não é deste mundo, sinto nestas estradas o sinal de seus
divinos passos. Vejo-O ainda na Cruz entregando a Deus o seu destino... Sinto a
clamorosa injustiça dos companheiros que O abandonaram inteiramente e me vem
uma recordação carinhosa das poucas mulheres que O ampararam no doloroso
transe... Em todas as homenagens a Ele prestadas, eu sou sempre a figura repugnante
do traidor... Olho complacentemente os que me acusam sem refletir se podem
atirar a primeira pedra... Sobre o meu nome pesa a maldição milenária, como
sobre estes sítios cheios de miséria e de infortúnio. Pessoalmente, porém,
estou saciado de justiça, porque já fui absolvido pela minha consciência no
tribunal dos suplícios redentores.
Quanto ao Divino Mestre – continuou Judas com os
seus prantos – infinita é a sua misericórdia e não só para comigo, porque se
recebi trinta moedas, vendendo-O aos seus algozes, há muitos séculos Ele está
sendo criminosamente vendido no mundo a grosso e a retalho, por todos os preços
em todos os padrões do ouro amoedado...
- É verdade – concluí – e os novos negociadores do
Cristo não se enforcam depois de vendê-LO.
Judas afastou-se tomando a direção do Santo
Sepulcro e eu, confundido nas sombras invisíveis para o mundo, vi que no céu
brilhavam algumas estrelas sobre as nuvens pardacentas e tristes, enquanto o
Jordão rolava na sua quietude como um lençol de águas mortas, procurando um mar
morto.
Recebida em Pedro Leopoldo a 19 de abril de 1935
Do livro Crônico de Além Túmulo. Psicografia de
Francisco Cândido Xavier.
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