sábado, 9 de abril de 2016

O TABOR E A PLANÍCIE


Amélia Rodrigues

Com a força da sua realidade poderia ser considerado um díptico: as bênçãos de Deus no monte e os conflitos do homem em toda a pujança de suas cores na planície.

Desciam Jesus, Pedro, Tiago e João das culminâncias do Tabor, onde comungaram com as excelências de Deus, ao encontro das baixadas espirituais das criaturas.

Há pouco, resplandecente, o Mestre estivera envolto por uma esfera de poderosa luz e dialogara com os venerandos antepassados do povo: Moisés e Elias.

As emoções ainda não se aquietaram na horizontalidade do habitual, e a curva descendente das dores tomava forma chocante no terra a terra das contingências humanas.

No alto, a visão da vida verdadeira; ao sopé, as angústias junto aos sofrimentos.

*

- “Espírito mudo e surdo, eu te ordeno: sai dele e não entre mais nele” – exortou Jesus com firmeza na voz, na qual a piedade se misturava à energia.

Não houve debate. Tudo simples. A cena breve culminou no declínio do jovem que ficara prostrado como morto, banhado por álgido suor, desfigurado.

O Mestre, comovido, curvou-se, tocou a fronte do ex-obsidiado e o levantou com gesto cativante.

Era quase um menino...

Sofria desde a mais tenra idade sob o jugo violento do impiedoso algoz desencarnado. As raízes do ódio nefando se perdiam nas sombras do passado, quando foram comensais da mesa farta da loucura e se enredaram em odienta cena de sangue... Agora a lei soberana, que jungia o criminoso não punido à justiça desrespeitada, manifestava-se sobranceira.

O parasito espiritual se imanara ao sofredor e reproduzia nele os esgares epilépticos em que se consumia, vítima de si mesmo, escravo do ódio. Na volúpia da vingança, atirava-o de encontro ao solo, ateava-lhe fogo às vestes, tentava afoga-lo, subjugava-o.

As esperanças da família se apagavam na lâmpada sem lume das tentativas de cura, impossível até aquele momento.

Seu pai ouvira falar do Rabi e o trouxera, na expectativa duvidosa de ver o filho recuperado, perdido como se encontrava no caminho do aniquilamento inexorável.

*

- Transcorreram oito dias após a “confissão de Pedro”, o Mestre tomou consigo Pedro, Tiago e João, e levou-os sozinhos, e à parte, para um alto monte.

Agosto, em plenitude, derrama sua taça de luz e calor sobre a terra. As papoulas e as margaridas jazem crestadas em hastes vencidas pela canícula. O céu muito azul e transparente concede visão infinita em todas as direções.

À medida que o Tabor vai sendo vencido, os painéis se desenrolam: embaixo os campos de trigo ceifado, a mancha pardacento-prateada do Jordão, na configuração de imenso alaúde entre sebes; para as bandas do oriente erguem-se altaneiros os montes Galaad e ao poente cintilam as águas do Mediterrâneo, como imenso espelho refletindo através da garganta natural entre o Monte Carmelo e os contrafortes altanados do Líbano; ao norte o Genesaré salpicado de velas coloridas e orlado por Tiberíades, Magdala, Cafarnaum, Betsaida, as cidades tão encantadoramente derramadas dos pequenos cerros na direção da praias, vestidas de palmeiras verdejantes...

Do acúmen a visão não se detém. De forma arredondada, a plataforma batida pelos ventos, às vezes coroada de zimbros, é a culminância dos 562 metros de altitude rochosa, sem vegetação, com destaque na imensa e formosa Galileia.

A noite ainda demora algumas horas para estender o seu manto imenso sob o céu. Os meses de agosto são de longos dias. O calor asfixia e requeima a rala vegetação.

A jornada é longa, na conquista do monte: mais de quatro horas de marcha lenta e cansativa, embora a beleza da paisagem deslumbrante em derredor.

Atingindo o acume, o Mestre se põe em oração. Os discípulos, suarentos e cansados, adormecem à sombra dos arbustos escassos.

Um grande silêncio envolve tudo e todos. O mormaço quase asfixia...

A noite vence a natureza e o Mestre ora.

A madrugada alcança o Rabi em oração. Os companheiros dormem. Vozes percutem na monotonia. Os discípulos despertam, assustados e são dominados pela visão sublime da transfiguração do Mestre, com as vestes incendidas, dialogando com Moisés e Elias. As palavras vibram no ar; mas não são palavras como as que se ouvem comumente...

Logo após, diluída a visão, Simão se acerca do Rabi e exclama:

- Mestre, bom é que estejamos aqui, e façamos três cabanas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias.

O Mestre fita-o compadecido.

Uma nuvem surge misteriosa e uma voz, então, exclama:

- Este é o meu filho amado; a Ele ouvi!

Os discípulos ainda não refeitos são tomados de pavor.

A grandiosa revelação fora feita.

Jesus estivera em toda a sua glória e eles foram testemunhas silenciosas e emocionadas do acontecimento incomparável.

Os Céus foram cindidos e os discípulos tiveram o “conhecimento do Divino”.

Pedro se reportará mais tarde a essa metamorfose do Mestre, testemunho insofismável em que fundamenta sua fé.

O Rabi, no entanto, exige-lhes silêncio.

A verdade tem que ser dosada para o entendimento da argila humana.

Mais tarde João, ao escrever os “ditos do Senhor”, iniciará a sua narrativa evocando, certamente, a cena inesquecível: “Nele estava a vida, e a vida era luz dos homens; a luz resplandeceu nas trevas, e as trevas não a compreenderam”.

*

- Descemos! – alvitra o Mestre.

- Não poderíamos aqui demorar-nos? – indaga Simão.

- É necessário descer – retruca Jesus. – Busquemos os que não dispõe de forças para subir. Os homens necessitam de nós. A nossa é a glória deles. Para eles sejam nossas alegrias e para nós as suas dores. Depois da comunhão com os Céus, a convivência entre os que demoram na Terra. O paraíso seria para nós estranho presídio sem aqueles que, no ergástulo das aflições, anseiam pelo país da liberdade. Desçamos. Os homens, para quem eu venho, nos esperam.

*

Na descida do monte confabulam:

- Rabi! – indagam como receosos – dizem os escribas que é mister que venha primeiro Elias...

- Elias já veio, e não o conheceram, mas fizeram-lhe tudo quanto quiseram. Assim farão, também, padecer o Filho do Homem...

“Então entenderam os discípulos que lhes falara de João Batista.”

A nova revelação de ser Elias, João Batista renascido, surpreende os companheiros que começam a compreender os inescrutáveis desígnios do Pai.

Os Espíritos estão estuantes de felicidade. Há festa em seus corações.

*

Jesus e os discípulos continuam descendo.

O dia esplende. Os acontecimentos são sóis em suas almas.

A plataforma do Tabor fica para trás.

A planície imensa se estende embaixo.

Lá estão as criaturas sofredoras e ansiosas, os companheiros aguardando.

Amedrontados, os discípulos se revezam.

- Afasta-te, Satanás! – exclama Judas, irado, enquanto o obsesso ulula.

- Filho da trevas, semente de Belzebu – brada Tadeu, com a voz rouca e os olhos injetados – por quem és, abandona tua vítima!

- Decaído, imundo – vocifera, pálido e suarento, Natanael – eu te exorto a que retornes às geenas!...

Curiosos se acercam dos gritadores, enquanto o endemoninhado, como se multiplicasse as forças que o vampirismo espiritual consome, mais se debate no solo e corcoveia, exasperado, a ameaçar o débil corpo em convulsão, semivencido.

É o próprio Dibbuk – soluça, desanimado, Felipe.

- Nada conseguiremos!1 – arremata o filho de Cléofas.

- Onde andará o Mestre – indaga perturbado, Simão, o zelote – que não vem socorrer-nos? Não saberá Ele de nossa aflição?...

Entreolham-se, estremecem, enquanto o obsidiado espumeja e se debate.

Falam todos de uma vez. Gritam inutilmente.

Vendo o Mestre e os companheiros, que chegam à charneca das misérias humanas, correm, aflitos e O saúdam.

- Que é que discutis com eles? – interroga, sereno, o Senhor.

- Mestre, trouxe-te o meu filho, que tem um Espírito mudo. E este, onde quer que o apanhe, despedaça-o, e ele espuma, e range os dentes, e vai-se secando; eu disse aos teus discípulos que expulsassem, e não puderam!

- Se podes – apela o pai – salva o meu filho.

- Se tu podes crer, tudo é possível ao que crê.

- Eu creio, Senhor! Ajuda a minha incredulidade.

O Rabi se comove. O semblante sereno expressa toda a angústia do seu Espírito.

Sem qualquer mágoa, fita os companheiros medrosos e os admoesta com veemência e compaixão. Compreende as fraquezas dos convidados a esparzir a semente da boa-nova.

Como a justificar-se a si mesmo e aos outros, Judas tenta esclarecer:

- Fizemos tudo quanto nos ensinaste e nada conseguimos...

- Até quando vos sofrerei e estarei convosco?

A indagação fica no ar, sem resposta.

A arrogância da fraqueza é mais petulante do que a vaidade da força.

O sinal do fracasso no orgulho é como chaga de fogo a requeimar.

- Espírito mudo e surdo...

Pálido e fraco, o moço sorriu. Avia gratidão sem palavras. Osculou a mão do Rabi e, conduzido pelo pai em êxtase de alegria, seguiram ambos no rumo do lar.

*

À noite, quando o zimbório se vestia de estrelas brilhantes, ainda sob o impacto das manifestações do Mestre, no Tabor e na planície, Simão, traduzindo possivelmente a visível inquietação dos companheiros, aproximou-se d’Ele, que meditava, e indagou, visivelmente emocionado:

- Por que não puderam eles expulsar o espírito imundo?

- Esta casta não pode sair com coisa alguma, a não ser com oração e jejum – elucido o Amigo.

Desejando, no entanto, utilizar o momento para melhor instruir os companheiros desatentos e pretensiosos, o Senhor esclareceu:

- Antes de tudo é necessário compreendamos que os espíritos imundos viveram antes, homens que foram, homens que continuam sendo. Enganados, como se deixaram conduzir no corpo, prosseguem enlouquecidos, fora dele. A morte não os transformou. Viajores do tempo, são o que fizeram. Ligados mentalmente às reminiscências das ações, demoram-se, sofrendo-as, imanados aos que amaram, vinculados àqueles que os fizeram sofrer...

Fez uma pausa, espontânea. E prosseguiu:

- Por essa razão a Boa-nova é um hino de amor e perdão. Amor indistinto e perdão indiscriminado.

Diante deles, nossos irmãos na sombra da ignorância, nenhuma força possui força senão a força do amor. Não apenas expulsá-los daquele convívio a que se agregam parasitariamente, mas também socorrê-los, enlaçando-os com amor...

Novamente silenciou, e envolveu os amigos num olhar de bondade, para logo continuar:

- São nossos irmãos da retaguarda, perdidos na ilusão das carnes a que teimosamente pretendem continuar ligados. Não se prepararam para a verdade. É em razão disso que a Mensagem de Vida não se reveste das indumentárias fantasiosas tão do agrado geral. É semente de luz para fecundação no solo do espírito.

Diante, pois, deles – possessos e possessores – só a oração do amor infatigável e o jejum das paixões conseguem mitigar a sede em que se entredevoram, entregando-os aos trabalhadores da Obra de Nosso Pai, que, em toda parte, estão cooperando com o Amor, incessantemente.

Se amardes ao invés de detestardes, se desejares socorrer e não apenas os expulsardes, tudo fareis, pois que tudo quanto eu faço podeis fazê-lo, e muito mais, se o quiserdes...

No leve ar da noite bailavam suaves brisas espraiando para o futuro a palavra do Rabi, como antevisão gloriosa para os dias porvindouros da Humanidade.


Psicografia de Divaldo Franco, mensagem do Espírito Amélia Rodrigues, publicada no livro “Primícias do Reino”



Nenhum comentário:

Postar um comentário

(-: , Olá, seja bem vindo, se o seu comentário for legal, e não trouxer conteúdo agressivo, ele será postado.